SEGURANÇA: OS DESAFIOS DA INDÚSTRIA DO SHIPPING
Há pouco mais de dez dias um navio carregado de carros afundou perto de um arquipélago português, após queimar por duas semanas depois de um incêndio. O episódio joga luz em alguns dos principais desafios da indústria do shipping para os próximos anos, de acordo com o último relatório de segurança da Allianz. Embora o número de perdas de embarcações tenha reduzido em 50% na década passada, mantendo-se no nível mais baixo, não se pode falar em mar de almirante diante de preocupações recentes. O crescimento exponencial dos navios, suas adaptações ao processo mundial de descarbonização, a possibilidade de ataques cibernéticos e a crise humanitária das tripulações trazem riscos significativos para gerenciamento, de acordo com o documento da seguradora.
Começando pelo tamanho das embarcações, navios que transportam contêineres, veículos (Ro-Ro) e graneleiros aumentaram nas últimas décadas por economia de escala e de combustível, uma tendência que deve continuar com a meta de redução de emissão de carbono da Organização Marítima Internacional (IMO). Desde 1968, a capacidade dos porta-contêineres foi ampliada em 1.500%. Já temos navios equivalentes a quatro campos de futebol de comprimento. O problema é que a infraestrutura portuária não cresceu no mesmo ritmo e os canais de navegação são os mesmos.
O encalhe do Ever Given, há um ano, no Canal de Suez, foi emblemático dessa situação. Se o navio não tivesse sido liberado com o auxílio de rebocadores, haveria um longo processo de descarregamento dos cerca de 18 mil contêineres a bordo. A título de comparação, em 2019, o porta-veículos Golden Ray tombou nos Estados Unidos e sua remoção levou mais de um ano, custando centenas de milhares de dólares. “O Ever Given trouxe preocupações à indústria de que os riscos associados a grandes navios podem, em breve, superar os benefícios”, assinala a Allianz.
O número de incêndios nessas megaembarcações vem aumentando a cada ano, especialmente nos porta-contêineres, e merece atenção especial no relatório. É a terceira causa de perdas totais no período 2011/2020. Os incidentes frequentemente começam nos próprios contêineres, podendo ser resultado da não declaração de cargas perigosas pelos proprietários. A maioria sai facilmente de controle, obrigando o abandono dos tripulantes e o aumento do perigo para a sociedade.
As adaptações da indústria às metas ambientais da IMO são outro desafio. O objetivo é reduzir a emissão de carbono dos navios em 40% até 2030 e de todos os gases do efeito estufa em 50% até 2050. Isso vai exigir investimentos substanciais em pesquisa para mudanças no design e na propulsão das embarcações, podendo ter implicações para o risco segundo a Allianz, que cita o exemplo do scrubber. A adoção do equipamento que diminui o teor de enxofre proveniente do óleo combustível estaria causando danos ao maquinário das embarcações. “Como vimos nos grandes porta-contêineres, desenvolvimentos que não focam no risco podem levar a consequências indesejadas e ao aumento da exposição, com grande impacto na cadeia de suprimentos”, diz o consultor de risco marítimo da seguradora, Rahul Khanna.
A empresa também alerta para a possibilidade de ataques cibernéticos, uma das questões sensíveis que envolvem navios autônomos, cuja discussão eu acompanho no Comitê de Segurança Marítima da IMO. Em maio de 2021, a companhia Colonial Pipeline, que opera a maior rede de oleodutos dos Estados Unidos, pagou US$ 4,4 milhões a hackers para ter seu sistema de computadores de volta.
De acordo com a Allianz, todas as grandes empresas de navegação e a própria IMO já foram alvo de tentativas semelhantes. Por enquanto, todas se deram em terra. O pior cenário seria um ataque terrorista e não se pode negar o potencial de estrago ou de bloqueio econômico de um gigante dos mares. Haja vista a explosão no Porto de Beirute, no Líbano, em agosto de 2020, e mais uma vez o Ever Given atravessado no canal.
E há ainda a crise humanitária das tripulações a partir da pandemia, que pode ter consequências de longo prazo. Segundo a IMO, desde a Covid-19, muitos tripulantes passaram a trabalhar mais dos que os 11 meses acordados pela Convenção sobre Trabalho Marítimo da Organização Internacional do Trabalho (ILO). Em março de 2021, estimava-se que 200 mil marítimos permaneciam a bordo diante das restrições de voos e viagens internacionais, com número igual de profissionais aguardando substituir os colegas.
O problema é sério, pois afeta a saúde física e mental das pessoas em um segmento no qual 80% dos acidentes estão relacionados ao fator humano. De acordo com a Allianz, isso significa também que os trabalhadores não estão sendo treinados e que o setor pode ter dificuldade para atrair novos talentos. A seguradora lembra do encalhe, nas Ilhas Maurício, do graneleiro Wakashio, que derramou toneladas de óleo em julho de 2020. Pelo menos dois tripulantes estavam a bordo há 12 meses, segundo a Lloyd’s List. No trabalho de pilotagem da praticagem, por exemplo, a comunicação com a tripulação é fundamental para a correta execução das ordens solicitadas pelo prático.
Os quatro pontos levantados pela Allianz, entre outros da análise, merecem cuidado redobrado de todos que integram o shipping, a fim de mantermos o alto nível de funcionamento. Estamos falando de uma indústria que movimenta mais de 90% do comércio global, com índice de acidentes de 0,002%. Ou seja, a cada 50 mil operações ocorre um incidente, não necessariamente grave. Pouquíssimos segmentos trabalham com essa eficiência de 99,998% e devemos manter o foco nas margens de erro que o setor opera.
A praticagem está inserida nos debates em nível internacional e sempre se mostra engajada na superação dos desafios, mas não podemos esquecer que existe um limite da condição de riscos. No fim das contas, quem paga é a sociedade.
Artigo do presidente da Praticagem do Brasil, Ricardo Falcão, publicado no portal BE News https://portalbenews.com.br/editoria/edicao-jornal/be-news-12e13-03–2022/