LIÇÕES DE UM ENCALHE: ARTIGO DE RICARDO FALCÃO NO GLOBO

O enca­lhe do mega­na­vio que cau­sou o fecha­men­to do Canal de Suez, no Egito, acen­de uma dis­cus­são, inde­pen­den­te­men­te das cau­sas do aci­den­te. Até que pon­to os por­tos con­ti­nu­a­rão ampli­an­do sua infra­es­tru­tu­ra para dar con­ta do cres­ci­men­to expo­nen­ci­al das embar­ca­ções? Temos que adap­tar o mun­do ao tama­nho dos navi­os? Em algum momen­to, os paí­ses vão pre­ci­sar enfren­tar esse debate.

Por eco­no­mia de esca­la e para fazer face à con­cor­rên­cia na dis­pu­ta pela car­ga, os navi­os por­ta-con­têi­ne­res foram cres­cen­do até che­gar aos 400 metros de com­pri­men­to – cer­ca de qua­tro cam­pos de fute­bol – e à capa­ci­da­de de 20 mil con­têi­ne­res. Os por­tos, por sua vez, tam­bém movi­dos pela com­pe­ti­ção no setor, inves­tem para não per­der a esca­la des­sas embar­ca­ções, alar­gan­do e apro­fun­dan­do canais de nave­ga­ção, baci­as de giro e ber­ços de atracação. 

Ocorre que há limi­tes para isso em alguns luga­res do mun­do. Ao mes­mo tem­po, eco­no­mi­ca­men­te, não é viá­vel dra­gar todos os por­tos. Logo, é pre­ci­so defi­nir quais serão os hub ports, que con­cen­tra­rão os inves­ti­men­tos para aco­mo­dar esses mega­na­vi­os, e quais serão os fee­ders, ou seja, os por­tos que vão rece­ber essa car­ga do lon­go cur­so e ali­men­tar os hubs, por meio da cabo­ta­gem (nave­ga­ção naci­o­nal). Os par­cos recur­sos públi­cos devem ser dire­ci­o­na­dos aos hubs. É uma dis­cus­são téc­ni­ca que não pode ser con­ta­mi­na­da pela política.

Do pon­to de vis­ta da segu­ran­ça, obvi­a­men­te aumen­tam os desa­fi­os em áre­as mais res­tri­tas ao trá­fe­go, pois cada vez mais nave­ga-se pró­xi­mo do fun­do e das mar­gens, como no caso em Suez, onde só havia 60 metros de canal nave­gá­vel para cada lado da embar­ca­ção. Na Amazônia, nave­ga­mos em situ­a­ções pare­ci­das nos rios Jari e Trombetas. 

As segu­ra­do­ras vêm aler­tan­do há anos para o ris­co mai­or que tra­zem os gran­des navi­os, infor­ma um rela­tó­rio anu­al da Allianz. Um cená­rio de coli­são e enca­lhe de duas embar­ca­ções em local sen­sí­vel para o meio ambi­en­te pode cus­tar US$ 4 bilhões, de acor­do com o docu­men­to. Não se pode esque­cer que um por­ta-con­têi­ne­res car­re­ga tone­la­das de com­bus­tí­vel para con­su­mo e mui­tas vezes, car­gas poluentes. 

Os pre­juí­zos econô­mi­cos foram bem conhe­ci­dos com o fecha­men­to de Suez: US$ 9,5 bilhões/dia, segun­do a Lloyd’s List. Mas ima­gi­nem se tives­se ocor­ri­do um vaza­men­to de óleo… Navios, quan­do enca­lha­dos, podem entor­tar e até par­tir, der­ra­man­do com­bus­tí­vel. Já ima­gi­na­ram um aci­den­te des­se nos rios da Amazônia, no lito­ral de Santos ou na para­di­sía­ca Angra dos Reis? São milha­res de ope­ra­ções rea­li­za­das todos os dias sem aci­den­tes, porém, bas­ta um para que tenha­mos uma tra­gé­dia como a de Brumadinho em nos­sas águas. Tudo com navi­os des­se tama­nho tem con­sequên­ci­as super­la­ti­vas e é neces­sá­rio ante­ci­pa­ção para rea­gir a situ­a­ções crí­ti­cas a tem­po, devi­do à inér­cia. Um navio de gran­de por­te, com toda for­ça adi­an­te (em tor­no de 25km/h), pode levar nove com­pri­men­tos de dis­tân­cia até parar, se usar máqui­na atrás. 

Reconhecida inter­na­ci­o­nal­men­te pelos índi­ces de segu­ran­ça nas mano­bras, a Praticagem do Brasil está pre­pa­ra­da para os desa­fi­os por vir – recen­te­men­te a Marinha homo­lo­gou navi­os de 366 metros em Santos. Todos os prá­ti­cos que atu­am em por­tos com con­di­ções de rece­ber as gran­des embar­ca­ções fize­ram trei­na­men­to em cen­tros de exce­lên­cia na França, nos Estados Unidos ou no Panamá. São exer­cí­ci­os rea­li­za­dos, em lagos, em mode­los tri­pu­la­dos de navi­os em esca­la redu­zi­da, que repro­du­zem o com­por­ta­men­to das embar­ca­ções em tama­nho real. Inclusive, são simu­la­das situ­a­ções como a que ocor­reu em Suez, quan­do o navio se apro­xi­ma da mar­gem e per­de gover­na­bi­li­da­de por efei­to hidrodinâmico.

Os prá­ti­cos bra­si­lei­ros pas­sam por um pro­ces­so rigo­ro­so de qua­li­fi­ca­ção des­de a sua for­ma­ção. Após serem sele­ci­o­na­dos pela Marinha como pra­ti­can­tes, eles par­ti­ci­pam de cen­te­nas de mano­bras super­vi­si­o­na­das duran­te um ano no míni­mo. Só então, podem pres­tar o exa­me de habi­li­ta­ção para prá­ti­co, a bor­do de embar­ca­ção. Depois, para se man­te­rem habi­li­ta­dos, devem exe­cu­tar um míni­mo de ser­vi­ços de pra­ti­ca­gem por qua­dri­mes­tre. Além dis­so, a cada cin­co anos, os prá­ti­cos devem com­ple­tar o Curso de Atualização para Práticos (ATPR) e tam­bém trei­nam regu­lar­men­te em simu­la­do­res para os desa­fi­os da profissão.

A pre­sen­ça de um prá­ti­co a bor­do reduz em cer­ca de 5,1 a 8,9 vezes a pro­ba­bi­li­da­de de aci­den­tes dian­te da ocor­rên­cia de um even­to de peri­go. O dado é de estu­do do Laboratório de Análise, Avaliação e Gerenciamento de Risco (LabRisco) da Universidade de São Paulo (USP). No Brasil, nun­ca hou­ve um gran­de aci­den­te com der­ra­ma­men­to de óleo.

Que o epi­só­dio em Suez sir­va de aler­ta à soci­e­da­de e a empre­sas de nave­ga­ção que pedem isen­ção de pra­ti­ca­gem para embar­ca­ções cada vez mai­o­res no Brasil. Felizmente, a Marinha regu­la for­te­men­te a ati­vi­da­de e, por enquan­to, tem asse­gu­ra­do as amar­ras nor­ma­ti­vas em prol da segurança.

Em tem­po: qual­quer con­clu­são sobre as cau­sas do aci­den­te em Suez é pre­ci­pi­ta­da. Só a inves­ti­ga­ção vai apon­tar o que fez a embar­ca­ção se apro­xi­mar da mar­gem e per­der gover­na­bi­li­da­de. Tudo o que acon­te­ceu foi regis­tra­do pelo voya­ge data recor­der (VDR): ima­gens do radar e da car­ta ele­trô­ni­ca (ECDIS), fun­ci­o­na­men­to dos equi­pa­men­tos do navio e con­ver­sas no pas­sa­di­ço (pon­te de comando). 

Ricardo Falcão é pre­si­den­te do Conselho Nacional de Praticagem (Conapra) e vice-pre­si­den­te da Associação Internacional de Práticos Marítimos (IMPA)

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