ENTREVISTA DO PRESIDENTE DA PRATICAGEM AO PORTAL BE NEWS

Em entre­vis­ta ao BE News, o pre­si­den­te da Praticagem do Brasil, Ricardo Falcão, fala sobre o tra­ba­lho dos prá­ti­cos e reba­te mitos liga­dos a esses profissionais.

Serviço que con­duz os navi­os na entra­da e saí­da dos por­tos e outras áre­as abri­ga­das, a pra­ti­ca­gem ain­da é mui­to des­co­nhe­ci­da do públi­co, inclu­si­ve no setor marí­ti­mo e por­tuá­rio. Mesmo entre os pou­cos que sabem da sua exis­tên­cia, há aque­les que têm a visão sim­plis­ta de que o prá­ti­co é o pro­fis­si­o­nal mui­to bem remu­ne­ra­do para “ape­nas esta­ci­o­nar embar­ca­ções”. Nesta entre­vis­ta, o pre­si­den­te da Praticagem do Brasil, o prá­ti­co Ricardo Falcão, fala sobre a ati­vi­da­de – de ori­en­ta­ção da nave­ga­ção das embar­ca­ções nos por­tos – e reba­te mitos que cer­cam a profissão.

Presidente, por que as pes­so­as têm essa visão de que o prá­ti­co é o pro­fis­si­o­nal que ganha mui­to para “esta­ci­o­nar” navios?

Essa men­sa­gem é dis­se­mi­na­da por aque­les que que­rem pagar menos pelo ser­vi­ço para aumen­tar o lucro da via­gem, ape­sar de a pra­ti­ca­gem não repre­sen­tar nem 1% do fre­te marí­ti­mo. E a men­sa­gem aca­ba sen­do pro­pa­ga­da pelos que des­co­nhe­cem a ati­vi­da­de. Desconhecem o nível de espe­ci­a­li­za­ção do prá­ti­co, o ris­co que ele cor­re a cada embar­que, a res­pon­sa­bi­li­da­de ambi­en­tal que ele admi­nis­tra e os ele­va­dos cus­tos de pres­ta­ção do serviço.

E como é o tra­ba­lho do prático?

O prá­ti­co é o pro­fis­si­o­nal que pilo­ta o navio não somen­te na atra­ca­ção e desa­tra­ca­ção, mas em toda a sua nave­ga­ção no canal de aces­so ao por­to. Essa nave­ga­ção é com­ple­xa e pode se esten­der por 25 milhas náu­ti­cas, 46 quilô­me­tros – até ter­mi­nais como no Rio de Janeiro ou no Paraná – a 615 milhas, 1.138km – como na Amazônia, via­gem que pode durar qua­tro dias com dois prá­ti­cos se reve­zan­do na pon­te de comando.

E como acon­te­ce este tra­ba­lho a bordo?

Na pon­te de coman­do, o prá­ti­co dá ordens de leme ao timo­nei­ro e de máqui­nas ao coman­dan­te ou a um dos ofi­ci­ais de ser­vi­ço, todas em inglês. Além dis­so, dá ordens de puxar e empur­rar aos mes­tres dos rebo­ca­do­res, na sua lín­gua nati­va. Ele tam­bém moni­to­ra o trá­fe­go ao redor, com­bi­na cru­za­men­tos com outros navi­os e coor­de­na o ser­vi­ço de amarração.

Por que o coman­dan­te do navio não pode rea­li­zar o tra­ba­lho, sen­do ele um ofi­ci­al de náutica?

Ele é trei­na­do para a nave­ga­ção em alto-mar, lon­ge dos peri­gos, cha­ma­da de ship mano­eu­vra­bi­lity. Já o prá­ti­co rece­be trei­na­men­to para nave­gar e mano­brar em águas mais res­tri­tas ao trá­fe­go, onde as embar­ca­ções se com­por­tam de manei­ra diver­sa e exis­tem con­di­ções com as quais o coman­dan­te não está fami­li­a­ri­za­do, como ven­tos, cor­ren­tes, ondas e marés. Esse trei­na­men­to se cha­ma shiphan­dling. Ambos são tra­du­zi­dos como mano­bra, mas têm sig­ni­fi­ca­dos bem diferentes. 

Como é a for­ma­ção do prático?

O prá­ti­co é sele­ci­o­na­do em pro­ces­so sele­ti­vo públi­co rea­li­za­do pela Marinha do Brasil, que é quem regu­la a ati­vi­da­de. Para par­ti­ci­par, ele pre­ci­sa ter cur­so supe­ri­or e habi­li­ta­ção de mes­tre-ama­dor. É uma sele­ção total­men­te espe­cí­fi­ca, em que o can­di­da­to deve estu­dar temas como mano­bra­bi­li­da­de do navio, arte naval, nave­ga­ção em águas res­tri­tas, mete­o­ro­lo­gia, oce­a­no­gra­fia etc. Este pro­ces­so é para pra­ti­can­te de prá­ti­co. Isso sig­ni­fi­ca que, depois de apro­va­do, ele par­ti­ci­pa de um pro­gra­ma de qua­li­fi­ca­ção no qual exe­cu­ta cen­te­nas de mano­bras super­vi­si­o­na­das duran­te o míni­mo de um ano. Só então, o pra­ti­can­te pode pres­tar o exa­me de habi­li­ta­ção para prá­ti­co, a bor­do de embar­ca­ção. Para se man­ter habi­li­ta­do, o prá­ti­co deve rea­li­zar uma quan­ti­da­de de mano­bras por perío­do, já que a pro­fis­são exi­ge a manu­ten­ção da expe­ri­ên­cia em dife­ren­tes navi­os e mano­bras. Além dis­so, a cada cin­co anos, ele é obri­ga­do a com­ple­tar um cur­so de atualização.

Quais os prin­ci­pais desa­fi­os da profissão?

Cada zona de pra­ti­ca­gem apre­sen­ta suas par­ti­cu­la­ri­da­des geo­grá­fi­cas e ambi­en­tais, além de limi­ta­ções em infra­es­tru­tu­ra por­tuá­ria. Mas, em geral, todos lida­mos com a inér­cia dos navi­os em canais e baci­as de giro, onde não há espa­ço para erros. Para se ter ideia, gra­ne­lei­ros ou petro­lei­ros de médio para gran­de por­te podem, mes­mo uti­li­zan­do máqui­na atrás, avan­çar uma milha náu­ti­ca até a para­da com­ple­ta, ou seja, 1.852 metros. Por isso, ante­ci­pa­ção é cru­ci­al no tra­ba­lho da pra­ti­ca­gem. Condições ambi­en­tais ines­pe­ra­das, como um ven­to aci­ma do limi­te, tam­bém podem ocor­rer no meio da mano­bra, assim como emer­gên­ci­as, como um leme tra­va­do, falha de máqui­na ou apa­gão do navio. Tudo isso acon­te­ce em áre­as mais res­tri­tas à nave­ga­ção, em meio a pré­di­os nas mar­gens do canal, prai­as e reser­vas ambientais.

Por que a pra­ti­ca­gem diz que o Estado é o seu cli­en­te, se é o arma­dor que paga pelo serviço?

Justamente por­que o prá­ti­co vai a bor­do para pro­te­ger a soci­e­da­de de aci­den­tes que podem pro­vo­car seve­ra polui­ção ambi­en­tal, mor­tes, danos ao patrimô­nio públi­co e pri­va­do e fecha­men­to de um por­to para a eco­no­mia. Não à toa, a pra­ti­ca­gem é um ser­vi­ço essen­ci­al por lei fede­ral, deven­do estar per­ma­nen­te­men­te dis­po­ní­vel 24 horas, sete dias por sema­na, nos 365 dias do ano. Sinistralidade míni­ma é um dos prin­cí­pi­os da Organização Marítima Internacional (IMO) que regem o ser­vi­ço de pra­ti­ca­gem. Prático a bor­do é sinô­ni­mo de prai­as lim­pas, turis­mo, pes­ca, sub­sis­tên­cia de ribei­ri­nhos e popu­la­ção abastecida. 

E sobre a remu­ne­ra­ção? Por que não se fala sobre o salário?

Prático não rece­be um salá­rio fixo men­sal de um empre­ga­dor. Ele é sele­ci­o­na­do pela Marinha para tra­ba­lhar em uma empre­sa pri­va­da, como sócio, rece­ben­do par­te do lucro após o paga­men­to dos cus­tos da empre­sa. As empre­sas de pra­ti­ca­gem têm a polí­ti­ca de não divul­gar o ganho dos sóci­os por enten­der que essa é uma ques­tão pes­so­al que afe­ta o direi­to à pri­va­ci­da­de, assim como um médi­co ou advo­ga­do não sai por aí dizen­do quan­to ganha. Todas as infor­ma­ções que apa­re­cem sobre ganho indi­vi­du­al são impre­ci­sas e não par­tem das empre­sas de pra­ti­ca­gem, até por­que este valor varia mui­to den­tro de uma zona de pra­ti­ca­gem e entre zonas de pra­ti­ca­gem dife­ren­tes, de acor­do com a quan­ti­da­de de navi­os aten­di­dos no perío­do. O que pode­mos afir­mar é que a remu­ne­ra­ção é con­di­zen­te com o que fala­mos até aqui: o nível de espe­ci­a­li­za­ção, o ris­co de mor­te em ser­vi­ço, a res­pon­sa­bi­li­da­de ambi­en­tal e os cus­tos de pres­ta­ção do serviço.

Que cus­tos são esses?

Custos advin­dos de padrões de ope­ra­ção exi­gi­dos nas Normas da Autoridade Marítima para o Serviço de Praticagem, a Normam-12. Usamos lan­chas para embar­car e desem­bar­car o prá­ti­co que cus­tam milhões de reais e pre­ci­sam de manu­ten­ção regu­lar. São embar­ca­ções com carac­te­rís­ti­cas espe­ci­ais de mano­bra­bi­li­da­de, esta­bi­li­da­de e potên­cia de máqui­na, capa­zes de supor­tar o con­ta­to dire­to com os navi­os. A nor­ma tam­bém exi­ge equi­pa­men­tos míni­mos para o fun­ci­o­na­men­to dos nos­sos cen­tros de ope­ra­ções. Essas esta­ções, cha­ma­das de ata­lai­as, são dota­das de alta tec­no­lo­gia e for­ne­cem as infor­ma­ções de apoio para a toma­da de deci­são do prá­ti­co a bor­do, como a situ­a­ção do trá­fe­go e os dados ambi­en­tais. Toda essa estru­tu­ra deve estar dis­po­ní­vel duran­te o ano intei­ro. E essa pron­ti­dão inin­ter­rup­ta tem um cus­to con­si­de­rá­vel, inclu­si­ve de pes­so­al, fora outros inves­ti­men­tos que rea­li­za­mos para com­pen­sar limi­ta­ções por­tuá­ri­as, como as lan­chas de bati­me­tria que iden­ti­fi­cam assoreamentos. 

Faltou falar­mos da ques­tão do ris­co de mor­te. É no momen­to do embar­que e do desem­bar­que que se faz presente?

Exatamente. O prá­ti­co embar­ca de sua lan­cha no navio em movi­men­to, a par­tir de uma esca­da esten­di­da no cos­ta­do da embar­ca­ção, cha­ma­da de esca­da de que­bra-pei­to. Ela pode ser com­bi­na­da com uma esca­da de por­ta­ló, incli­na­da, quan­do a dis­tân­cia da super­fí­cie da água até o pon­to de aces­so à embar­ca­ção supe­ra os nove metros, evi­tan­do uma lon­ga esca­la­da do prá­ti­co. O pro­ble­ma é que esses dis­po­si­ti­vos dos navi­os mui­tas vezes estão mal­con­ser­va­dos ou ins­ta­la­dos incor­re­ta­men­te. Em 2022, 16,79% esta­vam irre­gu­la­res, de acor­do com a pes­qui­sa anu­al de segu­ran­ça da Associação Internacional de Práticos Marítimos (IMPA). Infelizmente, todo ano um prá­ti­co mor­re em ser­vi­ço no mun­do. Este ano, lamen­ta­vel­men­te já foram sete.

Reportagem repro­du­zi­da do Portal BE News:
https://portalbenews.com.br/editoria/nacional/o‑pratico-vai-a-bordo-para-proteger-a-sociedade-de-acidentes/