“Controlar um navio envolve diversos aspectos não intuitivos”

Professor da Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante, do Centro de Instrução Almirante Graça Aranha, e do Curso de Atualização para Práticos des­de a sua ori­gem, o dou­tor Edson Mesquita sem­pre guar­dou as ano­ta­ções de sala de aula, até o momen­to em que elas alcan­ça­ram o tama­nho de um livro, na ver­da­de, de dois. “A mano­bra­bi­li­da­de do navio no sécu­lo 21” e “Princípios de hidro­di­nâ­mi­ca e a ação das ondas — sobre o movi­men­to do navio” des­per­ta­ram cedo o inte­res­se do públi­co, que, antes mes­mo do lan­ça­men­to mar­ca­do para 14 dezem­bro, em Brasília, que­ria saber como com­prá-los. E não é para menos. Sem per­der o cará­ter téc­ni­co, o autor teve a pre­o­cu­pa­ção de tor­nar o con­teú­do com­pre­en­sí­vel mes­mo para um lei­go, que con­se­gue ter uma boa ideia em cada capí­tu­lo do quão com­ple­xo é pilo­tar um navio, ao con­trá­rio do sen­so comum, como o lei­tor per­ce­be­rá nas linhas a seguir. 

RUMOS PRÁTICOS — Professor, como sur­giu a ideia dos livros? Desde o iní­cio a inten­ção era lan­çar duas publicações? 

Sou pro­fes­sor da Marinha há mais de 30 anos e sem­pre guar­dei as minhas notas de aula, que foram evo­luin­do com o tem­po. Inicialmente elas eram escri­tas a mão e depois fui trans­cre­ven­do este mate­ri­al para o com­pu­ta­dor. E aca­bei ten­do as par­tes do livro, que são os capí­tu­los, sepa­ra­das por assun­tos. A ideia era fazer um livro só, mas fica­ria gran­de demais. Então, divi­di­mos em duas obras independentes.

RP — Para quem é lei­go no assun­to as obras logo mos­tram o quão com­ple­xo é mano­brar um navio, não é mesmo?

Perfeito, não ape­nas mano­brar um navio, mas temos que ter em men­te tam­bém que os navi­os são dife­ren­tes. Todo mun­do dá valor, por exem­plo, a um coman­dan­te de um boeing ou de um caça. As pes­so­as enten­dem rapi­da­men­te que é uma pro­fis­são que exi­ge com­pe­tên­cia e habi­li­da­de. Já com navi­os não há esse enten­di­men­to. Mas navi­os são mui­to dife­ren­tes, assim como a dinâ­mi­ca de com­por­ta­men­to de cada um. Muitos pen­sam que nave­gar é fácil, que mano­brar embar­ca­ções é uma habi­li­da­de natu­ral de um mari­nhei­ro. E não é. Existe uma gran­de com­ple­xi­da­de para con­tro­lar um navio, que envol­ve diver­sos aspec­tos não intui­ti­vos para o ser huma­no. Não é só apli­car uma for­ça que o navio vai seguir naque­la dire­ção. Não vai. Além dis­so, tínha­mos navi­os com mano­bra­bi­li­da­de mui­to ruim. Somente a par­tir de 2004, a Organização Marítima Internacional defi­niu padrões míni­mos de mano­bra­bi­li­da­de para aten­der a cri­té­ri­os de segu­ran­ça. Um lei­go, por­tan­to, com­pre­en­de a dimen­são de um navio, mas não vai per­ce­ber ini­ci­al­men­te o quão com­ple­xo é o seu controle.

RP — O senhor che­gou a cur­sar físi­ca na USP. A maté­ria pare­ce ter bas­tan­te rela­ção com mano­bra­bi­li­da­de de navio, correto?

Sim, total rela­ção. Temos a jun­ção da mecâ­ni­ca dos flui­dos e da mecâ­ni­ca dos cor­pos rígi­dos pre­sen­tes na mano­bra do navio. É uma pai­xão tra­ba­lhar isso na prá­ti­ca. Um exem­plo é a cur­va de giro. Quando o navio está exe­cu­tan­do a ter­cei­ra fase, na con­di­ção de esta­do per­ma­nen­te, ele des­cre­ve um movi­men­to cir­cu­lar uni­for­me. Poxa, para um mate­má­ti­co e para um físi­co, é um pra­to cheio para aulas prá­ti­cas. Somente com a físi­ca con­se­gue-se expli­car cer­tos com­por­ta­men­tos do navio, e não pela intui­ção humana.

RP — Quem está se pre­pa­ran­do para o pro­ces­so sele­ti­vo para pra­ti­can­te de prá­ti­co tem essa noção?

Quando a pes­soa pega um livro de arte naval, às vezes não. E esse é um dos pro­ble­mas. Você enten­de que há uma com­ple­xi­da­de, mas pare­ce que é fácil. Ao se fazer uma abor­da­gem vol­ta­da ape­nas para a con­du­ção do navio, geral­men­te tem-se a impres­são de que mano­brar um navio está liga­da somen­te à habi­li­da­de huma­na. O can­di­da­to aca­ba ten­do um cho­que de rea­li­da­de quan­do pega outra bibli­o­gra­fia mais téc­ni­ca, como prin­cí­pi­os de arqui­te­tu­ra naval. Ele não con­se­gue nem ler. Primeiro, por­que não havia uma lite­ra­tu­ra em por­tu­guês sobre o assun­to. Segundo, por se tra­tar de um lin­gua­jar téc­ni­co que mui­tas vezes dife­re do con­cei­to de arte pre­sen­te no livro de arte naval.

RP — O con­ta­to com a pra­ti­ca­gem no Curso de Atualização para Práticos (ATPR) con­tri­buiu de que manei­ra para a pro­du­ção do material?

Contribuiu mui­to. No pri­mei­ro ciclo do ATPR, eu apre­sen­ta­va os prin­cí­pi­os de hidro­di­nâ­mi­ca rela­ci­o­na­dos à mano­bra­bi­li­da­de do navio, de for­ma que todos os prá­ti­cos come­ças­sem a falar uma lin­gua­gem téc­ni­ca da PIANC (Associação Mundial de Infraestrutura de Transporte Marítimo), mui­to liga­da a con­cei­tos empre­ga­dos por mui­tos prá­ti­cos estran­gei­ros, mas que não era da nos­sa cul­tu­ra. Isso aju­dou a ver­mos outras publi­ca­ções no mer­ca­do marí­ti­mo que trou­xes­sem exem­plos, para que eu pudes­se apli­cá-los com o conhe­ci­men­to da físi­ca. Então, pas­sei a ter a docu­men­ta­ção prá­ti­ca das mano­bras que foram adap­ta­das no livro. Essa tro­ca com os prá­ti­cos foi fun­da­men­tal. Eu dava exem­plos da físi­ca e eles iden­ti­fi­ca­vam com situ­a­ções do seu dia a dia, em dife­ren­tes regiões do país, de Manaus a Rio Grande. Os prá­ti­cos come­ça­ram a ver que fenô­me­nos podem não se repe­tir com o mes­mo navio, por­que cada por­to tem a sua geo­me­tria e as con­di­ções ambi­en­tais mudam de uma zona de pra­ti­ca­gem para outra. 

RP — De que for­ma a mano­bra e dinâ­mi­ca de navi­os se asse­me­lha com a mano­bra e dinâ­mi­ca de aeronaves?

Assim como num avião, a teo­ria bási­ca de con­tro­la­bi­li­da­de de um navio é fun­da­men­ta­da na teo­ria de asas. Para que um navio venha a gui­nar e exe­cu­tar uma cur­va, tem que fazer uso da for­ça de sus­ten­ta­ção cri­a­da pelo ângu­lo de ata­que, que a gen­te cha­ma de ângu­lo de deri­va. Então, na rea­li­da­de, o cas­co do navio é uma asa con­tro­la­do pelo seu flap, no caso o leme. Da mes­ma for­ma, avião e navio têm empe­na­gem. Existe total seme­lhan­ça. Os ale­mães foram os pri­mei­ros a tra­tar o navio des­sa for­ma, na déca­da de 1920. 

RP — Em suas pales­tras, o senhor gos­ta de citar que “ciên­cia marí­ti­ma sem prá­ti­ca é oca e sem teo­ria mari­nhei­ra é fata­li­da­de”. Pode citar um exemplo? 

É como se um enge­nhei­ro naval cons­truís­se um car­ro e nun­ca pegas­se esse caro para diri­gir. Existe a neces­si­da­de de a teo­ria cami­nhar jun­to com a prá­ti­ca, assim como na avi­a­ção. Nos anos 1970, na cons­tru­ção dos pri­mei­ros gran­des navi­os VLCC da Esso, o coman­dan­te Gomes, com a sua prá­ti­ca, come­çou a suge­rir algu­mas mano­bras ao enge­nhei­ro Lincoln Crane Jr. que per­mi­ti­ram ao gover­no ame­ri­ca­no ado­tar padrões até de como seria o canal de aces­so e o empre­go de rebo­ca­do­res. Nos ciclos do ATPR, por exem­plo, essa união da teo­ria com a prá­ti­ca faci­li­tou mui­to minha vida, pois come­cei a ver o problema. 

RP — Nos livros, o senhor res­sal­ta que cada navio tipo tem sua pró­pria “impres­são digi­tal hidro­di­nâ­mi­ca” ou seu “DNA hidro­di­nâ­mi­co”. No caso, esta­mos falan­do da aná­li­se das for­ças ambi­en­tais que atu­am sobre o navio e que dife­re para cada embarcação? 

Não ape­nas isso. Cada navio tem as suas deri­va­das hidro­di­nâ­mi­cas que mos­tram o seu com­por­ta­men­to, como ele desen­vol­ve o ângu­lo de ata­que, o ângu­lo de deri­va, como atin­ge uma deter­mi­na­da razão de gui­na­da e uma dada velo­ci­da­de. E essa carac­te­rís­ti­ca é dada pela inte­ra­ção entre o cas­co, o pro­pul­sor e o leme, que é com­ple­ta­men­te dife­ren­te para cada navio tipo. Logo, não pos­so pegar o com­por­ta­men­to de um deter­mi­na­do navio e dizer que o outro vai ter o com­por­ta­men­to igual.

RP — Além das infor­ma­ções que o prá­ti­co dis­põe no pilot card, como ele pode ficar mais fami­li­a­ri­za­do com esse DNA?

Esse DNA vai ser per­ce­bi­do duran­te o trei­na­men­to no simu­la­dor. Por isso, as pra­ti­ca­gens têm adqui­ri­do simu­la­do­res no Brasil inteiro. 

RP — Sobre as ondas, tema do seu segun­do livro, por que se debru­çar sobre essa for­ça espe­cí­fi­ca? Como elas afe­tam o com­por­ta­men­to do navio? 

É uma for­ma clás­si­ca de tra­tar o assun­to na arqui­te­tu­ra naval. O movi­men­to do navio em ondas é uma dis­ci­pli­na dife­ren­te da mano­bra do navio. No movi­men­to em ondas, temos for­ças osci­la­tó­ri­as que vão exi­gir um conhe­ci­men­to um pou­co mais abran­gen­te do que a hidro­di­nâ­mi­ca do navio. Essa sepa­ra­ção eu tam­bém fiz para tor­nar bem cla­ro os con­cei­tos. Os livros de arte naval no Brasil dizem que o navio não aba­te em ondas. É um absur­do e um ris­co à segu­ran­ça da nave­ga­ção. As pes­so­as dizem que o navio só tem movi­men­tos no pla­no ver­ti­cal, mas ele aba­te em ondas, e não aba­te pou­co. O navio fun­ci­o­na como um que­bra-mar flu­tu­an­te e você tem que con­si­de­rar isso ao fazer a sua mano­bra de entra­da. Um dos pro­ble­mas que eu tinha era iden­ti­fi­car com qual a frequên­cia de encon­tro de ondas o navio pode­ria entrar. Às vezes, uma onda de menor altu­ra, mas com frequên­cia de encon­tro mais bai­xa, pode impe­dir a entra­da do navio, devi­do a gran­des osci­la­ções que o navio pode adqui­rir quan­do em res­so­nân­cia com ela. E esse é um pon­to impor­tan­te: saber iden­ti­fi­car como o navio vai aba­ter com ondas, prin­ci­pal­men­te quan­do ele for fazer uma cur­va em um canal desa­bri­ga­do, para iden­ti­fi­car nes­se canal se essa onda vai ter inter­fe­rên­cia na fol­ga abai­xo da qui­lha do navio e ao mes­mo tem­po per­ce­ber se vai entrar em res­so­nân­cia com ela. Hoje em dia, ter esse conhe­ci­men­to sig­ni­fi­ca mais lucro para um por­to. O sis­te­ma de cala­do dinâ­mi­co ReDRAFT, por exem­plo, apli­ca esses con­cei­tos. Com a lei­tu­ra do livro, você per­ce­be a impor­tân­cia de poder con­fi­ar nes­se soft­ware que faz esse tipo de análise.

RP — As ondas podem ter for­ça seme­lhan­te à de ventos? 

Sim, a mag­ni­tu­de da for­ça das ondas em rela­ção ao aba­ti­men­to do navio é da ordem da for­ça do ven­to. Os mari­nhei­ros não per­ce­bi­am isso por­que havia um erro da tra­di­ção de achar que o navio não aba­te em ondas. Geralmente tem-se onda e ven­to em con­jun­to e a pes­soa pen­sa­va que o navio aba­tia por cau­sa do ven­to. Mas, se você gerar ondas num tan­que de pro­vas em labo­ra­tó­ri­os na USP ou na UFRJ, onde não há ven­to ou cor­ren­te, vai per­ce­ber que o navio aba­te no pla­no hori­zon­tal e enca­lha. O prá­ti­co, por­tan­to, tem que com­bi­nar a mano­bra do navio e o con­tro­le dele em ondas. Com os gran­des con­têi­ne­ros, sur­ge o pro­ble­ma de se entrar em res­so­nân­cia com o perío­do da onda e ocor­rer osci­la­ções que geram danos para car­ga, tri­pu­la­ção ou para o pró­prio navio.

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