Afinal, onde tem Praticagem?

O Vice-Presidente da Associação Internacional de Práticos Marítimos (IMPA) e Diretor-Presidente elei­to do Conselho Nacional de Praticagem (Conapra), Prático Ricardo Falcão, estre­ou sua colu­na no novo por­tal do pro­gra­ma Amigos do Mar. Neste pri­mei­ro arti­go, ele pro­cu­ra dei­xar mais cla­ro para a soci­e­da­de como uma região é defi­ni­da para se tor­nar uma Zona de Praticagem. Leia a seguir:

“Olá, ami­go lei­tor. Sinto-me mui­to hon­ra­do com o con­vi­te do Amigos do Mar para escre­ver esta colu­na. Os assun­tos afe­tos ao ser­vi­ço de pra­ti­ca­gem são, com rela­ti­va frequên­cia, des­co­nhe­ci­dos de mui­tas pes­so­as que bus­cam com­pre­en­der o vas­to mun­do do ship­ping. Várias per­gun­tas são recor­ren­tes e, em alguns casos, a res­pos­ta está em publi­ca­ções estran­gei­ras ou em exem­plos dados por outros paí­ses, que aca­bam segui­dos por aqui.

Mas, afi­nal, vamos ao tema: como uma região é defi­ni­da para ser uma Zona de Praticagem? Percebo que, na defi­ni­ção dada pela Marinha, em suas nor­mas, são uti­li­za­dos ter­mos que, ape­sar de abran­ge­rem por com­ple­to o assun­to, não o tor­nam de fácil absor­ção para a soci­e­da­de. Para a sua com­pre­en­são, uti­li­zan­do-se ini­ci­al­men­te ape­nas o cri­té­rio téc­ni­co, pre­ci­sa­mos recor­rer às defi­ni­ções em inglês da pala­vra “mano­bra de navi­os”. Apesar de em por­tu­guês serem tra­du­zi­das sim­ples­men­te como “mano­bra”, na ver­da­de são duas pala­vras com sig­ni­fi­ca­dos e abran­gên­ci­as bem diver­sos. A pri­mei­ra é ship mano­eu­vra­bi­lity e a outra shiphan­dling.

A Organização Marítima Internacional (IMO), atra­vés de seu Comitê de Segurança da Navegação (MSC na sigla ingle­sa), edi­tou a reso­lu­ção MSC.137(76) “STANDARDS FOR SHIP MANOEUVRABILITY”, segui­da das notas expla­na­tó­ri­as MSC/Circ.1053, que tra­tam de padrões míni­mos de com­por­ta­men­to de mano­bra­bi­li­da­de que os navi­os pre­ci­sam exe­cu­tar nos tes­tes de mar, ao final da sua cons­tru­ção. E estes padrões ali­men­tam os dados que são dis­po­ni­bi­li­za­dos em todos os pas­sa­di­ços, sen­do de conhe­ci­men­to obri­ga­tó­rio para o coman­dan­te e ofi­ci­ais de náutica.

Estas infor­ma­ções de ship mano­eu­vra­bi­lity são uti­li­za­das quan­do o navio está em alto mar, onde é pro­fun­do, com todo o oce­a­no dis­po­ní­vel e com bai­xo trá­fe­go para que os navi­os mano­brem entre si e com outras embar­ca­ções meno­res, evi­tan­do aci­den­tes. Nenhuma des­tas infor­ma­ções res­pon­de sobre como um navio se com­por­ta com todo leme, míni­ma for­ça adi­an­te e meia car­ga, por exem­plo. Não pro­vê a nenhum ofi­ci­al infor­ma­ções de como será o com­por­ta­men­to do navio onde o cas­co dele pre­ci­sa inte­ra­gir hidro­di­na­mi­ca­men­te com o fun­do ou com as mar­gens; nem como se com­por­tam dois navi­os entre si, quan­do mui­to pró­xi­mos um do outro. Estes conhe­ci­men­tos fazem par­te das con­si­de­ra­ções de shiphan­dling e esta é uma maté­ria dada ape­nas de manei­ra teó­ri­ca aos ofi­ci­ais mer­can­tes, duran­te um semes­tre da car­rei­ra de ofi­ci­al, seguin­do padrão IMO.

Quando um navio se apro­xi­ma do que cha­ma­mos de “águas res­tri­tas”, onde é neces­sá­rio um conhe­ci­men­to que não faz par­te dos padrões da Convenção Internacional de Treinamento, Certificação e Serviço de Quarto para Aquaviários, se soli­ci­ta a “asses­so­ria ao Comandante reque­ri­da por for­ça de pecu­li­a­ri­da­des locais que difi­cul­tem a livre e segu­ra movi­men­ta­ção da embar­ca­ção”, defi­ni­ção legal de pra­ti­ca­gem. Porém, dois pon­tos não ficam cla­ros nes­ta defi­ni­ção. O pri­mei­ro é que a mano­bra uti­li­za­da pela pra­ti­ca­gem é obti­da atra­vés de uma quan­ti­da­de mui­to alta de trei­na­men­to, em diver­sas fases, em navi­os reais, sem uti­li­zar simu­la­do­res; e é foca­da em for­mar um espe­ci­a­lis­ta em shiphan­dling, com esco­po defi­ni­do em outra nor­ma da IMO, que é a reso­lu­ção MSC A.960(23) “CERTIFICAÇÃO E TREINAMENTO DE PRÁTICOS”. O segun­do pon­to é que, por nor­ma legal inter­na­ci­o­nal, até se um mete­o­ro cair no navio, o coman­dan­te é o res­pon­sá­vel por tudo que acon­te­ce, sen­do todas as outras pes­so­as a bor­do seus asses­so­res. Mesmo que o pró­prio Comandante da Marinha este­ja a bor­do de um navio, o coman­dan­te do navio não per­de a sua posi­ção e, prin­ci­pal­men­te, a sua responsabilidade.

Vamos dei­xar cla­ro que isto não sig­ni­fi­ca que ele tenha cul­pa ou que os demais res­pon­sá­veis não sejam envol­vi­dos tam­bém. Todavia, ine­xis­te situ­a­ção em que o coman­dan­te do navio não res­pon­da ao inqué­ri­to, ins­ta­la­do pela Capitania dos Portos local, peran­te o Tribunal Marítimo, mes­mo que não tenha par­ti­ci­pa­do dire­ta­men­te de um fato ou aci­den­te da nave­ga­ção. Esta é a con­du­ta inter­na­ci­o­nal, pois o coman­dan­te é o pre­pos­to comer­ci­al do arma­dor e o res­pon­sá­vel por tomar as deci­sões em casos onde o segu­ro ou os clu­bes de P&I (clu­bes de arma­do­res que cobrem res­pon­sa­bi­li­da­de civil con­tra ter­cei­ros) pre­ci­sem ser aci­o­na­dos. E o coman­dan­te cum­pre as ori­en­ta­ções do arma­dor, fre­quen­te­men­te defi­ni­das com o foco em inte­res­ses comer­ci­ais. Lembremo-nos que mui­tas vezes o dono do navio não é uma pes­soa físi­ca, mas um gru­po de inves­ti­men­to. Ter o prá­ti­co a bor­do ali­via as pres­sões sofri­das pelo coman­dan­te que, em prol da segu­ran­ça, teria que tomar deci­sões que colo­ca­ri­am em ris­co o seu pró­prio emprego.

As deci­sões em prol do Estado são toma­das pela pra­ti­ca­gem local, obe­de­cen­do cri­té­ri­os das Autoridades Portuária e Marítima. Durante os qua­se 22 anos que tra­ba­lho como prá­ti­co, enca­mi­nhei deze­nas de denún­ci­as às auto­ri­da­des: defi­ci­ên­ci­as de radar, eco­ba­tí­me­tro, agu­lha giros­có­pi­ca etc. Presenciei até mes­mo casos de coman­dan­tes insis­tin­do para mano­brar em momen­to onde a cor­ren­te era mui­to for­te e a mano­bra colo­ca­ria em ris­co toda a comu­ni­da­de local. E a razão para isto é mui­to sim­ples: medo de per­der o empre­go e ser subs­ti­tuí­do caso pro­ce­des­se de outro modo. Desconheço caso de auto­de­nún­cia por par­te de um comandante.

Então, ao cum­prir uma fun­ção de pro­te­ção da comu­ni­da­de, por for­ça de nor­ma da Autoridade Marítima, e, ao mes­mo tem­po, ter sóli­da com­pe­tên­cia em shiphan­dling, con­si­go res­pon­der em par­te o moti­vo pelo qual o ser­vi­ço de pra­ti­ca­gem é essen­ci­al para a soci­e­da­de. Exemplos de situ­a­ções seme­lhan­tes podem ser con­fe­ri­das no site de Port Revel, um dos mai­o­res cen­tros de trei­na­men­to do mun­do http://www.portrevel.com/9796-ship-handler-said.htm.

Quando a exper­ti­se em shiphan­dling é pri­mor­di­al­men­te uti­li­za­da ao invés da de ship mano­eu­vra­bi­lity é que sur­ge a neces­si­da­de das zonas de pra­ti­ca­gem. Um pon­to a ficar cla­ro é que, ao coman­dan­te, não é exi­gi­da nenhu­ma prá­ti­ca de shiphan­dling, nem para con­se­guir a posi­ção, nem para man­tê-la, tudo den­tro do padrão inter­na­ci­o­nal dese­nha­do para sua car­rei­ra. Dentro des­te enfo­que tam­bém temos a res­pos­ta para as situ­a­ções de isen­ção de pra­ti­ca­gem (PEC na sigla inter­na­ci­o­nal), que exis­tem no mun­do: são navi­os peque­nos (até 90 metros de com­pri­men­to apro­xi­ma­da­men­te) ou, em alguns casos, dota­dos de mui­tos recur­sos extras para auxi­li­ar nas situ­a­ções de shiphan­dling, onde o dimi­nu­to tama­nho das embar­ca­ções em rela­ção à via nave­gá­vel per­mi­te que o navio tenha uma nave­ga­ção segu­ra uti­li­zan­do basi­ca­men­te os conhe­ci­men­tos de ship mano­eu­vra­bi­lity. O Brasil já emi­te isen­ção de pra­ti­ca­gem para embar­ca­ções de até 3000 ou 5000 tone­la­das, man­ten­do o padrão ado­ta­do no mun­do todo.

Porém, isen­ções de pra­ti­ca­gem não são emi­ti­das para situ­a­ções quan­do o tipo de embar­ca­ção é petro­lei­ro, gasei­ro, pas­sa­gei­ro ou quan­do é alta a sen­si­bi­li­da­de do meio ambi­en­te. Exemplo do Rio Amazonas e Rio Pará. A comu­ni­da­de inter­na­ci­o­nal não admi­ti­rá jamais que o aci­den­te do Exxon Valdez, cau­sa­do em 1989 por isen­ção de pra­ti­ca­gem, em um petro­lei­ro, no Alaska, se repi­ta. Retorno a este pon­to em um pró­xi­mo artigo”.