40 ANOS DO EPISÓDIO COM O NAVIO MARINA L EM PARANAGUÁ

O prá­ti­co vai a bor­do para evi­tar os aci­den­tes evi­tá­veis e mini­mi­zar as con­sequên­ci­as dos ine­vi­tá­veis. Afinal, navi­os podem apre­sen­tar falhas ou se depa­rar com con­di­ções ambi­en­tais ines­pe­ra­das quan­do não é mais segu­ro o seu retor­no. Foi o que acon­te­ceu, há 40 anos, com o prá­ti­co Anatole Trochimczuk. Em 23 agos­to de 1985, com 16 anos de expe­ri­ên­cia na Praticagem do Paraná, ele pas­sou pela expe­ri­ên­cia mais trau­má­ti­ca na profissão.

Apesar de todos seus esfor­ços no pas­sa­di­ço, o navio que con­du­zia aca­bou enca­lhan­do após enfren­tar uma pio­ra seve­ra do esta­do de mar, com ondas de cer­ca de sete metros. Anatole per­ma­ne­ceu qua­se 24 horas a bor­do e teve que ser desem­bar­ca­do por um heli­cóp­te­ro da FAB. Felizmente, não hou­ve mor­tes ou polui­ção ambiental. 

O gra­ne­lei­ro MARINA L, com 193 metros de com­pri­men­to, só veio a ser desen­ca­lha­do em 1º de outu­bro daque­le ano, com a trans­fe­rên­cia de car­ga. A embar­ca­ção trans­por­ta­va 29.500 tone­la­das de soja.

Em 17 de dezem­bro de 1987, o caso foi jul­ga­do pelo Tribunal Marítimo como “decor­ren­te de for­tu­na do mar”, ten­do como “cau­sa deter­mi­nan­te con­di­ções adver­sas de tem­po”, por­tan­to, isen­tan­do Anatole de cul­pa. No acór­dão, a Corte do Mar asse­gu­rou que o prá­ti­co ado­tou todas as pro­vi­dên­ci­as para safar o navio de acor­do com as boas nor­mas marinheiras.

Dez anos depois do aci­den­te, Anatole se apo­sen­tou. Em 2016, rece­beu home­na­gem pós­tu­ma com o batis­mo de uma lan­cha de pra­ti­ca­gem com seu nome. Hoje, tal­vez fos­se evi­ta­do esse tipo de situ­a­ção, dada a capa­ci­da­de atu­al de pre­ver con­di­ções meteorológicas.

Abaixo, con­fi­ra tre­chos do rela­to do prá­ti­co Anatole à Capitania dos Portos do Paraná. Entre parên­te­ses no rela­tó­rio, encon­tram-se comen­tá­ri­os adi­ci­o­nais dele à família: 

“Às 16h45, ini­ci­a­va a desa­tra­ca­ção do Marina L. A mano­bra foi bas­tan­te rápi­da, pois o navio esta­va atra­ca­do por bores­te, já apro­a­do à bar­ra; e, em cer­ca de dez minu­tos, dava máqui­nas adi­an­te, lar­gan­do os rebo­ca­do­res. O navio pros­se­guiu nave­gan­do nor­mal­men­te, com velo­ci­da­de esti­ma­da em 13 nós. Quando nave­gá­va­mos pró­xi­mo à boia de nº 17, rece­bi pelo rádio a infor­ma­ção – da lan­cha que saí­ra para aten­der ao desem­bar­que do prá­ti­co Furquim, que nave­ga­va à nos­sa fren­te – de que come­ça­va a apa­re­cer um swell na bar­ra, embo­ra ain­da sem com­pro­me­ter a saí­da dos navi­os. Informei à lan­cha que o Marina L pros­se­guia rumo à bar­ra e que, em pou­co mais de uma hora, esta­ria trans­pon­do a bar­ra. O tem­po per­ma­ne­cia bom, com ven­to les­te de for­ça dois na esca­la Beaufort. Quando o navio se encon­tra­va entre as boi­as 14 e 12, rece­bi avi­so do prá­ti­co Furquim de que o esta­do do mar pio­ra­va mui­to, que as vagas tinham aumen­ta­do e que ele tinha difi­cul­da­des para desem­bar­car, acon­se­lhan­do-me a regres­sar ao por­to pois jul­ga­va arris­ca­da minha pos­si­bi­li­da­de de trans­por a bar­ra. Respondi que o navio se encon­tra­va em posi­ção de não per­mi­tir o seu retor­no e nem sequer o fun­deio. Informei, então, ao coman­dan­te o que ocorria.

Nas pro­xi­mi­da­des da boia 7, soli­ci­tei máqui­na a meia for­ça a fim de dimi­nuir o emba­te do navio com as vagas e a ampli­tu­de dos pos­sí­veis catur­ros – osci­la­ção da proa e da popa para cima e para bai­xo. Nas ime­di­a­ções da boia 2 de dra­ga­gem e no pri­mei­ro catur­ro mais acen­tu­a­do, o navio des­go­ver­nou de 8º a 10º para bores­te. As vagas atin­gi­am uma altu­ra de qua­tro a cin­co metros, vin­das de proa, mas atin­gin­do o navio mais na amu­ra de bom­bor­do. Imediatamente, foi car­re­ga­do o leme todo a bom­bor­do e dada toda máqui­na adi­an­te, vol­tan­do o navio ao cur­so ori­gi­nal e o leme a meio. O navio já havia pas­sa­do a boia 2 de dra­ga­gem, quan­do uma nova vaga fez com que ele catur­ras­se vio­len­ta­men­te. Senti que tocou no fun­do do canal com sua popa e, de ime­di­a­to, gui­nou rapi­da­men­te para bores­te, quan­do nova­men­te o leme foi car­re­ga­do todo a bom­bor­do. O navio não mais aten­deu ao leme, vol­tou a tocar o fun­do na vaga seguin­te, per­deu rapi­da­men­te o seu seg­men­to e veio a enca­lhar cer­ca de 200 metros da boia 2.

Cerca de dez a 15 minu­tos após o enca­lhe, uma gran­de onda (de altu­ra apro­xi­ma­da de sete metros), visi­vel­men­te a mai­or de todas que atin­gi­ram o navio, que­brou sobre o cas­te­lo de proa, inun­dou o con­vés de bor­da a bor­da, var­ren­do de proa a popa; e, final­men­te, que­bran­do de encon­tro à ante­pa­ra fron­tal da supe­res­tru­tu­ra a ré, enchen­do as asas do pas­sa­di­ço de água. Escoada a água, pôde-se ver alguns homens da guar­ni­ção de con­vés esti­ra­dos, feri­dos após serem ati­ra­dos de encon­tro às fer­ra­gens do navio (o coman­dan­te ain­da ten­tou adver­ti-los da gran­de onda).

O navio batia for­te­men­te con­tra o fun­do a cada vaga que pas­sa­va, modi­fi­can­do a proa pau­la­ti­na­men­te até ficar de tra­vés com as vagas (a cada impac­to do navio con­tra o ban­co de areia era neces­sá­rio segu­rar-se fir­me­men­te a fim de evi­tar uma que­da). As máqui­nas foram para­das e, em segui­da, ten­ta­mos toda for­ça atrás, com leme a meio, duran­te três ou qua­tro minu­tos, não obten­do resul­ta­do. Às 18h20, con­ta­tei a pra­ti­ca­gem a res­pei­to do ocor­ri­do, infor­man­do que era neces­sá­rio que a agên­cia marí­ti­ma pro­vi­den­ci­as­se urgen­te­men­te dois dos melho­res rebo­ca­do­res por­tuá­ri­os para safar o navio, pois ele batia cons­tan­te­men­te con­tra o fun­do, sofren­do esfor­ços de alque­bra­men­to e con­tra-alque­bra­men­to mui­to visíveis.

Às 20h40, foram pas­sa­dos dois cabos de nylon para o rebo­ca­dor CENTAURUS e outros dois para o rebo­ca­dor LAGOA GAÚCHA, todos pela proa, pois a ini­ci­a­ti­va era girar a proa para bom­bor­do na dire­ção do canal. Ao tesa­rem os cabos, mes­mo com pou­ca máqui­na, cada rebo­ca­dor teve um dos seus cabos par­ti­dos devi­do ao esta­do do mar e às con­di­ções sur­ra­das das espi­as de amar­ra­ção. Com o ris­co de o cabo rom­pi­do ser colhi­do pelo héli­ce do CENTAURUS, o rebo­ca­dor foi obri­ga­do a lar­gar o úni­co cabo que ain­da tinha pas­sa­do ao navio.

Estando a proa des­guar­ne­ci­da para segu­ran­ça da tri­pu­la­ção, com três cabos na água e soma­das as gran­des vagas que difi­cul­ta­vam a mano­bra, o LAGOA GAÚCHA enros­cou um dos cabos no seu héli­ce, fican­do pre­so ao navio e impos­si­bi­li­ta­do de mano­brar. À mer­cê das vagas, ele foi leva­do para bores­te e, com um esti­cão mai­or do cabo, esse veio a se par­tir, dei­xan­do o rebo­ca­dor à deri­va. Posteriormente, foi aba­ti­do para cima do ban­co da mar­gem sul do canal, fican­do em situ­a­ção extre­ma­men­te peri­go­sa, pois as vagas que­bra­vam sobre o ban­co e o rebo­ca­dor (o LAGOA GAÚCHA por vezes desa­pa­re­ceu em meio às ondas).

O rebo­ca­dor CENTAURUS não podia pres­tar qual­quer auxí­lio, pois não havia água para che­gar nas pro­xi­mi­da­des do LAGOA GAÚCHA. Esse pas­sou por cima do ban­co, à deri­va e dura­men­te cas­ti­ga­do pelo mar, ten­do pos­te­ri­or­men­te con­se­gui­do safar o héli­ce e regres­sa­do ao por­to para repa­ro das avarias.

O MARINA L, sem­pre empur­ra­do pelas vagas, já se encon­tra­va a uns 150 metros da par­te mais rasa do ban­co de areia. Na che­ga­da do rebo­ca­dor LAGOA MINEIRA, pro­pus uma mano­bra de ten­ta­ti­va de desen­ca­lhe pela popa, que esta­va mais pró­xi­ma do canal e abri­ga­da para a guar­ni­ção. O coman­dan­te, porém, não con­cor­dou. Ele expli­cou que suas espi­as eram mate­ri­al vetus­to e can­sa­do, que já havia três aci­den­ta­dos a bor­do sem poder mais arris­car sua tri­pu­la­ção e que iria pro­vi­den­ci­ar cabos novos para mano­bra de desen­ca­lhe. O coman­dan­te, pos­te­ri­or­men­te, me comu­ni­cou que o leme não aten­dia ao coman­do do timão, não saben­do a cau­sa do defeito.

Esgotadas as pos­si­bi­li­da­des de safar o navio, per­ma­ne­ci no pas­sa­di­ço obser­van­do o com­por­ta­men­to da embar­ca­ção sofren­do esfor­ços con­si­de­rá­veis e, pro­va­vel­men­te, for­man­do um ber­ço debai­xo da qui­lha, o que o fazia flu­tu­ar na cris­ta das vagas e tocar o fun­do no cava­do delas, já que não deve­ria bater com tan­ta vio­lên­cia pela pro­fun­di­da­de local. Por vol­ta das 2h, o navio come­çou a bater com mais vio­lên­cia e adqui­rir ban­da por bores­te. Os esfor­ços do navio se tor­na­vam cada vez mais visí­veis, a pon­to de se per­ce­ber movi­men­tos senoi­dais no ali­nha­men­to hori­zon­tal dos tam­pões das esco­ti­lhas e as tor­ções da embar­ca­ção no ali­nha­men­to das ver­ti­cais dos guindastes.

Quando a incli­na­ção do navio se acen­tu­ou mais, che­gan­do a medir uma ban­da média de 20º, pois a embar­ca­ção dava balan­ços duran­te as bati­das no fun­do, aler­tei ao coman­dan­te que, além do ris­co de o navio se par­tir, a situ­a­ção se enca­mi­nha­va para ris­co emi­nen­te de embor­ca­men­to por bores­te e que, dado o esta­do do mar, a ban­da do navio e seus movi­men­tos brus­cos, não have­ria con­di­ções de arri­ar as bale­ei­ras. Em uma emer­gên­cia, tería­mos que sal­tar na água e nadar até a lan­cha de pra­ti­ca­gem, sen­do que os rebo­ca­do­res não pode­ri­am se apro­xi­mar do navio por sota­ven­to, pois a pro­fun­di­da­de era insuficiente.

Sugeri, então, que o coman­dan­te pre­pa­ras­se a tri­pu­la­ção para um pos­sí­vel aban­do­no do navio nas cir­cuns­tân­ci­as des­cri­tas e man­ti­ves­se a tri­pu­la­ção des­per­ta. Concordando comi­go, infor­mei-lhe que soli­ci­ta­ria outra lan­cha de pra­ti­ca­gem equi­pa­da com o mai­or núme­ro pos­sí­vel de cole­tes sal­va-vidas, cober­to­res, esca­das peque­nas de que­bra-pei­to e cabos, o que foi fei­to. Mandei a pra­ti­ca­gem infor­mar a Capitania dos Portos sobre a pron­ti­dão em que nos encon­trá­va­mos. Essa, por sua vez, infor­mou que man­ti­nha uma lan­cha tri­pu­la­da e pron­ta para emergência.

Felizmente, as vagas come­ça­ram a dimi­nuir com a maré enchen­te e, pou­co antes do alvo­re­cer, o ader­na­men­to do navio dimi­nuiu tam­bém. Não hou­ve qual­quer rela­ção das vagas de fun­do com os ven­tos, pois esses per­ma­ne­ce­ram sem­pre fra­cos. Os albo­res da auro­ra trou­xe­ram alí­vio a todos a bor­do, pois as con­di­ções do navio e do mar havi­am melho­ra­do e, apa­ren­te­men­te, pas­sa­do o ris­co de per­da da embar­ca­ção, embo­ra ela con­ti­nu­as­se ader­na­da e baten­do con­tra o fundo.

Às 10h, um heli­cóp­te­ro da Força Aérea Brasileira pai­rou sobre o navio, içan­do os tri­pu­lan­tes feri­dos e a espo­sa do coman­dan­te. Por vol­ta das 14h30, fui desem­bar­ca­do pelo heli­cóp­te­ro da FAB, pois as vagas de fun­do per­ma­ne­ci­am, embo­ra de menor altu­ra, impos­si­bi­li­tan­do o desem­bar­que por lan­cha de pra­ti­ca­gem. O navio per­ma­ne­cia com ban­da de 10º a 15º e con­ti­nu­a­va a bater con­tra o fun­do no momen­to do meu desembarque”. 

Foto do navio: Edson de Lima Lucas